quarta-feira, 23 de março de 2016

Maurice Halbwachs e a questão da memória coletiva

por Bianca Wild

A questão central na obra de Halbwachs, consiste na afirmativa de que a memória individual existe sempre e a partir de uma memória coletiva, posto que todas as lembranças são constituídas no interior de um grupo específico. A origem de várias ideias, reflexões, sentimentos, paixões que atribuímos a nós mesmos, são, na verdade, inspiradas pelo grupo. Halbwachs no que diz respeito à memória individual refere-se à existência de uma “intuição sensível”; haveria então na base de toda lembrança, o chamado a um estado de consciência puramente individual que para distingui-lo das percepções onde entram elementos do pensamento social – aceitaremos que se chame intuição sensível.
Tal sentimento de persuasão é o que garante, de certa forma, a coesão no grupo, esta unidade coletiva, concebida por ele como o espaço de conflitos e influencias entre uns e outros. A memoria individual construída a partir das referências e lembranças próprias do grupo refere-se, portanto, a um ponto de vista sobre a memória coletiva. Olhar este, que deve ser sempre analisado considerando-se o lugar ocupado pelo sujeito no interior do grupo e das relações mantidas com outros meios.
Maurice Halbwachs aponta que as lembranças podem, a partir desta “vivência” em grupo, ser reconstruídas ou simuladas. Podemos criar representações do passado ajustadas na percepção de outras pessoas, no que imaginamos ter acontecido ou pela internalização de representações de uma memória histórica. A lembrança, de acordo com o autor é uma imagem engarrafada em outras imagens.
A lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, afirma Halbwachs, e, além disso, preparada para outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora se manifestou  bem alterada. As lembranças podem ser simuladas quando ao entrar em contato com as lembranças de outros sobre pontos comuns em nossas vidas, acabamos por expandir nossa percepção do passado, contando com informações dadas por outros integrantes do mesmo grupo ao qual pertencemos.
Por outro lado, afirma Halbwachs, não há memória que seja somente “imaginação pura e simples” ou representação histórica que tenhamos construído que nos seja exterior, ou seja, todo esse processo de construção de memória passa por um referencial que é o sujeito. A memória individual não está isolada. Frequentemente toma como referência pontos externos ao sujeito. O suporte em que se apoia a memória individual encontra-se relacionado às percepções produzidas pela memória histórica. A vivência em vários grupos desde a infância estaria na base da formação de uma memória autobiográfica, pessoal.
Os quadros coletivos da memória não se resumem em datas, nomes e fórmulas,  eles representam correntes de pensamento e de experiência onde reencontramos nosso passado porque este foi atravessado por isso tudo. A memória apoia-se sobre o passado vivido, o qual permite a constituição de uma narrativa sobre o passado do sujeito de forma viva e natural, mais do que sobre o passado apreendido pela história escrita. Em Halbwachs, a memória coletiva histórica é compreendida como a sucessão de acontecimentos marcantes na história de um país.
A memória coletiva é pautada na continuidade e deve sempre ser vista no plural (memórias coletivas), ora justamente porque as memórias de um indivíduo ou de um país estão na base da formulação de uma identidade, que a continuidade é vista como característica marcante. A história, por outro lado, encontra-se pautada na síntese dos grandes acontecimentos da história de uma nação, o que para Halbwachs faz das memórias coletivas apenas detalhes.
O que justifica ao historiador estas pesquisas de detalhes, é que o detalhe somado ao detalhe resultará num conjunto, esse conjunto se somará a outros conjuntos, e que no quadro total que resultará de todas essas sucessivas somas, nada está subordinado a nada, qualquer fato é tão interessante quanto outro, e merece ser enfatizado e transcrito na mesma medida.
Para Halbwachs a função primordial da memória enquanto imagem partilhada do passado é a de promover um laço de filiação entre os membros de um grupo com base no seu passado coletivo, conferindo-lhe uma ilusão de imutabilidade, ao mesmo tempo em que cristaliza valores e as acepções predominantes do grupo ao qual as memórias se referem. O autor argumentou ainda que qualquer análise sobre a origem das recordações pessoais deve tomar em consideração a influência que nelas exercem as instituições sociais como o parentesco, a comunidade, a religião, a organização política e a classe social.
Halbwachs considerou que a memória coletiva é o locus de ancoragem da identidade do grupo, assegurando a sua continuidade no tempo e no espaço. Para o autor a identidade coletiva precede a memória, determinando aquela o conteúdo desta, considerando que a identidade é estável e coerente. Halbwachs concordou que é o indivíduo que recorda, porém não deixa de sublinhar que o indivíduo que recorda fá-lo apenas enquanto membro de um determinado grupo social. Para o autor é na sociedade  que as pessoas adquirem normalmente as suas memórias, é também na sociedade que recordam, reconhecem e localizam as suas memórias.
Essa conceptualização pressupõe uma sujeição das memórias individuais aos padrões coletivos, visto que em última análise, o que recordamos, enquanto indivíduos é sempre condicionado pelo fato de pertencermos a um grupo. Ao sujeitar a memória a este determinismo social, Halbwachs pode ter negligenciado as tensões dialéticas existentes entre a memória individual e a construção social do passado.
Halbwachs enfatizou excessivamente “a natureza coletiva da consciência social e concedeu relativo desprezo a questão do relacionamento entre a consciência individual e a das coletividades, que esses indivíduos efetivamente construíram”, concebeu o indivíduo como “uma espécie de autómato, passivamente obediente a uma vontade coletiva interiorizada.”
As contribuições de Halbwachs denotam, porém, em muitos aspectos uma grande atualidade. A premissa de que todos os grupos sociais desenvolvem uma memória do seu próprio passado coletivo e que essa memória é indissociável da manutenção de um sentimento de identidade, que permite identificar o grupo e distingui-lo dos demais é a ainda o ponto de partida de todos os estudos sobre essa matéria.
A conceituação que Halbwachs faz de memória coletiva leva-o a conceber quer a memória, quer a identidade que a determina, como sistemas estáticos e coerentes de acepções e valores que permitem manter e solidificar os laços afetivos existentes entre os membros de um grupo material e mentalmente identificado no espaço e no tempo. O grupo, conforme concebido por Halbwachs, é uma entidade autônoma e independente no seio do qual é mantida uma ligação exclusiva com um passado comum.
As memórias subsistem porque fazem parte de um conjunto de valorações e significados que são comuns a todos os membros do grupo, na medida em que as imagens privadas que cada um tem do passado são submetidas a padrões adequados mantidos coletivamente. Para Halbwachs, a memória é um movimento contínuo e retém aquilo que ainda está vivo na consciência do grupo, a história é uma ponte entre o passado e o presente, que tenta restabelecer a continuidade interrompida em algum ponto. Logo não há história no presente, pois só é possível recriar correntes de pensamento coletivo que tomam impulso no passado.
Outro aspecto distintivo , segundo Halbwachs, é que pode haver várias memórias coletivas, pertencentes a grupos distintos, mas só uma história da nação, da mesma forma que pode haver uma história universal, mas não uma memória universal. Segundo Halbwachs, grande parte de nossas lembranças repousam no social e no histórico: “ a lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente e, além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada.” Concluindo, para Halbwachs as lembranças seriam incorporadas pela história à medida em que fossem deixando de existir ou à medida em que os grupos que as sustentavam deixassem de existir.



Referências


AMADO, Janaína.; FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos & abusos da história oral. 4. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2001.

CARVALHAL. Juliana Pinto. Maurice Halbwachs e a questão da memória. Revista
Espaço Acadêmico. Nº. 56. Rio de Janeiro. 2006 pp. 1-5. Disponível site:
http://www.espacoacademico.com.br. Acesso 23 de março de 2008.

FERREIRA, Marieta de Moraes. História, tempo presente e história oral. Topoi, Rio de Janeiro, p. 314-332, dez. 2002.
FREITAS, Fabiana Junqueira de; BRAGA, Paula Lou Ane Matos. Questões
introdutórias para uma discussão acerca da história da memória. Revista Eletrônica do Arquivo do Estado de São Paulo. Nº 13. Agosto, 2006.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Ed. Centauro, 2004.

JOUTARD, P. História oral: balanço da metodologia e da produção nos últimos 25 anos. In: AMADO, Janaína.; FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos & abusos da história oral. 4. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2001. p. 267-277
MONTENEGRO, Antonio Torres. História e Memória a Cultura Popular Revisitada. 5 ed. São Paulo: Contexto 2003, p. 153 .

POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.2, nº 3, 1989.

ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. IN: FERREIRA, Marieta de Moraes & AMADO, Janaína. Usos e Abusos da História Oral. RJ: FGV, 2002, p. 95.

SEIXAS, Jacy Alves de. Percursos de Memórias em Terras de História: Problemáticas Atuais. IN: BRESCINI, Stella; NAXARA, Marcia (orgs.). Memoria e (Res) Sentimento: Indagações sobre uma questão sensível. Campinas, UNICAMP, 2004.

terça-feira, 1 de março de 2016

Culturas hibridas – estratégias para entrar e sair da modernidade – Néstor Canclini

1 - O por vir do passado
- Canclini questiona como o sentido histórico intervém na constituição dos agentes centrais para a constituição de identidades modernas, como as escolas e museus, qual é o papel dos ritos e das comemorações na renovação da hegemonia política.
- Resistência a modernidade – os modernizadores para legitimar sua hegemonia precisam persuadir seus destinatários que ao mesmo tempo que renovam a sociedade, prolongam as tradições compartilhadas. Posto que pretendem abarcar todos os setores, os projetos modernos se apropriam dos bens históricos e das tradições populares.
- A necessidade de apoiarem-se uns nos outros – leva a alianças frequentes entre grupos culturais e religiosos fundamentalistas com grupos econômicos e tecnocratas modernizadores – na medida em que suas posições são contraditórias, essas alianças são quebradas ou instalam tensões explosivas.
- Nos estudos e debates sobre a modernidade latino-americana a questão dos usos sociais do patrimônio continua ausente, como se o patrimônio histórico fosse de competência exclusiva dos restauradores, arqueólogos e museólogos, especialistas do passado.
- é necessário analisar as funções do patrimônio histórico para explicar por que os fundamentalismos, a idealização dogmática desses referentes aparentemente estranhos a modernidade , têm-se reativado nos últimos anos.
- o patrimônio cultural de apresenta alheio aos debates sobre a modernidade, constitui o recurso menos suspeito para garantir a cumplicidade social.
- Pois esse conjunto de práticas tradicionais que nos identificam como nação ou povo , é apreciado como um dom, algo que recebemos do passado com tal prestigio simbólico que não cabe discuti-lo – as únicas operações possíveis são preserva-los, restaurá-los, difundi-los – são a base mais secreta da simulação social que nos mantem juntos.
- A perenidade desses bens leva a imaginar que seu valor é inquestionável e torna-os fontes do consenso coletivo, para além das divisões entre classes, etnias e grupos que cindem a sociedade e diferenciam os modos de apropriar-se do patrimônio.
- O patrimônio é o lugar onde melhor sobrevive, hoje, a ideologia dos setores oligárquicos.
- A conservação desses bens arcaicos, teria pouco a ver com a sua utilidade atual. Preservar um lugar histórico, certos móveis e costumes, é uma tarefa sem outro fim que o de guardar modelos estéticos e simbólicos. Sua conservação inalterada testemunharia que a essência desse passado glorioso sobrevive às mudanças.

2.A teatralização do poder

- Entender as relações da modernidade com o passado requer examinar as operações de ritualização cultural.
- o patrimônio existe como força politica na medida em que ele é teatralizado: em comemorações, monumentos e museus. Na América latina o analfabetismo tornou possível que a cultura fosse predominantemente visual.
- Ser culto então é apreender um conjunto de conhecimentos , em grande medida icônicos , sobre a própria história e também participar dos palcos em que os grupos hegemônicos fazem com que a sociedade apresente para si mesma o espetáculo de sua origem.
- Canclini pretende deter-se principalmente na construção visual e cênica da significação diferentemente das analises habituais sobre ideologia.
- Canclini cita o fato de que a teatralização da vida cotidiana e do poder foi estudada há poucos anos por interacionistas simbólicos e estruturalistas, mas já havia sido reconhecida por escritores e filósofos que viram nela elemento fundamental na constituição da burguesia, dos burgos, da cidade. Existindo antecedentes da concepção de vida como teatro já em Platão, Nas leis e no Satiricon de Petrônio. Mas o que lhe interessa é o sentido moderno de encenação que alguns homens realizam diante de outros homens, da maneira como começaram a observar Diderot, Rousseau e Balzac: a atuação social como encenação, simulacro, espelho de espelhos, sem modelo original.
- A teatralização do patrimônio é o esforço para simular que há uma origem, uma substância fundadora em relação a qual deveríamos atuar hoje. Essa é a base das políticas sociais autoritárias.  “O mundo é um palco, mas o que deve ser representado já está prescrito.” As práticas e os objetos valiosos encontram-se catalogados em um repertório fixo. Ser culto implica conhecer esse repertório de bens simbólicos e intervir corretamente nos rituais que o reproduzem. Por isso as noções de coleção e ritual são fundamentais para desmontar vínculos entre cultura e poder.
- O fundamento filosófico do tradicionalismo se resume na certeza de que há uma coincidência ontológica entre a realidade e representação, entre a sociedade e as coleções de símbolos que a representam. O que se defini por patrimônio e identidade  pretende ser o reflexo fiel da essência nacional.
- Celebra-se o patrimônio histórico constituído pelos acontecimentos fundadores, os heróis que os protagonizaram e os objetos fetichizados que os evocam. Os ritos legítimos são os que encenam o desejo de repetição e perpetuação da ordem.
- As relações entre governo e povo consistem na encenação do que se supõe ser o patrimônio definitivo da nação. Os políticos e os sacerdotes são os atores vicários desse drama.
- De acordo com Canclini : “ hoje sabemos que toda política é feita, em parte, com recursos teatrais: as inaugurações do que não se sabe se vai ter fundos para funcionar, as promessas do que não se pode cumprir, o reconhecimento público dos direitos que serão negados em privado.”
- O sentido dramático da comemoração é acentuado pelos silêncios enquanto se oferece o palco ritual para que todos compartilhem um saber que é um conjunto de subentendidos. (...) Todo grupo que quer diferenciar-se e afirmar sua identidade faz uso tácito ou hermético de códigos de identificação fundamentais para coesão interna e para proteger-se frente a estranhos.
- Nos regimes conservadores a politica cultural costuma reduzir-se à administração do patrimônio preexistente e à reiteração de interpretações estabelecidas, (...) buscam uma maior identificação do publico alvo com o capital cultural acumulado, com sua distribuição e usos vigentes. Para o conservadorismo patrimonialista o fim último da cultura é converter-se em natureza. Ser natural como um dom.
- A escola é um palco fundamental para a teatralização do patrimônio. Transmite em cursos sistemáticos o saber sobre os bens que constituem o acervo natural e histórico. (...) a excessiva ritualização , como único paradigma , usado dogmaticamente , condiciona seus praticantes para que se comportem de maneira uniforme em contextos idênticos e incapacita para agir quando as perguntas são diferentes e os elementos da ação estão articulados de outra maneira.
- Nos processos sociais, as relações altamente ritualizadas com um único e excludente patrimônio histórico – nacional ou regional – dificultam o desempenho em situações mutáveis, as aprendizagens autônomas e a produção de inovações. O tradicionalismo substancialista incapacita para viver no mundo contemporâneo, que se caracteriza, de acordo com o autor por sua heterogeneidade, mobilidade e desterritorialização.
- O tradicionalismo aparece muitas vezes como recurso para suportar as contradições contemporâneas. (...) Frente à impotência para enfrentar as desordens sociais, o empobrecimento econômico e os desafios tecnológicos, frente a dificuldade para entendê-los, a evocação de tempos remotos  reinstala na vida contemporânea arcaísmo que a modernidade havia substituído. A comemoração se torna uma prática compensatória: se não podemos competir com as tecnologias avançadas celebremos nosso artesanato e técnicas antigas; se os paradigmas ideológicos modernos parecem inúteis para dar conta do presente e não surgem novos, reconsagremos os dogmas religiosos ou os cultos esotéricos que fundamentaram a vida antes da modernidade.
- As mudanças na concepção do museu-inserção nos centros culturais, criação dos ecomuseus, de museus comunitários, escolares , de sítio e várias inovações cênicas e comunicacionais ( ambientações, serviços educacionais, introdução de vídeo...) impedem de continuar falando dessas instituições como simples depósitos do passado. – Hoje devemos reconhecer que as alianças involuntárias ou deliberadas, dos museus com os meios de comunicação de massa e o turismo foram mais eficazes para a difusão cultural que as tentativas dos artistas de levar a artes as ruas.
- A crise do museus não se encerrou, uma caudalosa bibliografia continua indagando sobre o obstinado anacronismo de muitos deles e sobre a violência que exercem sobre os bens culturais ao arrancá-los de seu texto originário e reorganizá-los sob uma visão espetacular da vida. São debatidas as mudanças de que necessita uma instituição, marcada desde a sua origem pelas estratégias mais elitistas, para rever sua posição na industrialização e democratização da cultura.
- As ações tardias a favor do patrimônio costumam ser obra da sociedade civil, de empresas privadas ou grupos comunitários.(...) em alguns países que conseguiram construir bons museus de história e de arte, grande parte deles pertence a bancos, fundações e associações não estatais. concentram-se nas grandes cidades, atuam sem conexão entre si e com o sistema educativo em parte porque dependem de órgãos particulares e também pela falta de uma politica cultural orgânica a nível nacional. Servem mais como conservadores de uma pequena porção de patrimônio, como recurso de promoção turística e publicidade de empresas privadas do que como formadores de uma cultura visual coletiva.
- A partir dos anos de 1950, quando se institucionalizou a revolução e as correntes modernizadoras se impuseram na politica governamental, o patrimônio foi organizado em museus diferenciados. O desenvolvimento industrial e turístico, a maior profissionalização de artistas e cientistas sociais contribuíram para separar o histórico do artístico, o tradicional do moderno, o culto do popular. A fim de criar espaços próprios de consagração e exibição, para cada setor surgiu uma complexa rede de museus que se multiplicaram a cada seis anos e constituem, junto com as escolas e os meios de comunicação de massa, os cenários para classificação e valorização dos bens culturais.
- Com o objetivo de compreender as estratégias com que os particulares e o Estado põe em cena o patrimônio cultural, Canclini analisa dois casos representativos das políticas museográficas desenvolvidas no México, escolhidas, segundo o autor, porque coincidem com as ensaiadas em outros países latino-americanos para inserir o culto tradicional na modernidade.
- A primeira estratégia é a espiritualização esteticista do patrimônio. A segunda é a ritualização histórica e antropológica. Caclini ressalta que analisará as duas politicas com a intenção de averiguar se seus modos de consagrar a cultura nacional podem sustentar-se nessa época de crise radical dos nacionalismos.
- A estetização do patrimônio – os objetos antigos são separados das relações sócias para as quais foram produzidos; são impostos a culturas que integravam a arte e a religião, a politica e a economia, os critérios de autonomização das esculturas e quadros inaugurados pela estética moderna; os objetos se convertem em obras e seu valor se reduz ao jogo formal que estabelecem graças a vizinhança com outros nesse espaço neutro, aparentemente fora da história, que é o museu. Desvinculadas das referencias semânticas e pragmáticas, essas peças são vistas segundo o sentido que as relações estéticas lhes fixam, que estabelece entre elas a sintaxe arbitrária do programa de exposição.
- A museografia esteticista não expulsa a cerimonialidade do museu. Cria outro tipo de ritual, não o que dava sentido social a essas peças, mas o desses templos laicos fundados para celebrar a supremacia do olhar culto. A solenidade dos edifícios, a complexidade das mensagens que transmitem as dificuldades, para entende-los obrigam a atuar neles como quem representa docilmente um texto dramático que prescreve a maneira pelo qual o visitante deve mover-se, falar e sobretudo , calar, se quiser que sua ação tenha sentido.
- De acordo Canclini, é inegável que esse tipo de museu contribui para aproximar as culturas, fazê-las conhecer-se entre si e dar-nos provas visuais de uma história universal comum. Ao tornar patente que nosso povo e nossos antigos artistas tem uma história criativa, mas ao mesmo tempo não são os únicos que criam, devemos a eles ter feito oscilar as mesquinhas certezas do etnocentrismo muito antes que os meios de comunicação de massa.
- “ a fascinação frente a beleza, anula o assombro frente ao diferente” – Pede-se a contemplação, não o esforço que deve fazer quem chega a outra sociedade e precisa aprender sua língua, suas maneiras de cozinhar e de comer, de trabalhar e alegrar-se. Esse museus servem pouco para relativizar os próprios hábitos, porque não se parecem com o antropólogo que ao ir para um outro grupo se descentra de seu universo; assemelham-se mais ao computador ou ao vídeo que trazem informação para nossa casa e adaptam aos esquemas conhecidos. Entregam aos familiarizados com a estética culta uma visão doméstica da cultura universal.
- Museu nacional de antropologia mexicano ( representa  unificação estabelecida pela nacionalismo politico no México contemporâneo ) monumentalização (concentração de objetos grandiosos e diversos) e ritualização nacionalista – os monumentos mais enfáticos são os que se referem a acontecimentos fundadores da nação – a retórica monumentalista não foi construída somente com o gigantesco ,mas por seu contraste com o pequeno. – Esse museu propõe uma versão monumentalizada do patrimônio mediante a exibição de peças gigantes, a evocação mitificada de cenas reais e o acúmulo de miniaturas. A maior façanha do museu reside em dar uma visão tradicionalista da cultura mexicana dentro de um invólucro arquitetônico moderno e usando técnicas museográficas recentes. Tudo leva a exaltar o patrimônio arcaico, supostamente puro e autônomo, sem impor de forma dogmática essa perspectiva. Apresenta-o de um modo aberto, que permite, ao mesmo tempo admirar o monumental e deter-se em uma relação reflexiva, por momentos íntima, com o que exibe.
- De acordo com Canclini essas duas oscilações – monumentalização e miniaturarização – entre exterior e interior – São complementares. A história se enlaça com a cotidianidade graças ao fato de o que a realidade apresenta de indefinido e indefinível é assimilado pela duplicação imaginária da museografia.
- O museu de antropologia do México torna visíveis ainda outras operações fundamentais no tratamento moderno do patrimônio , amplia o repertório incluindo o popular. Mais ainda : diz que a cultura nacional tem sua fonte e seu eixo no indígena. Essa abertura se faz , contudo, estabelecendo limites para o étnico, equivalentes aos que se praticam nas relações sociais.( Separação da cultura antiga da cultura atual – utilizando a diferença entre arqueologia e etnografia) – é um museu onde as pautas científicas organizam o material e dão explicações consistentes. Onde se reproduz a especialização das ciências antropológicas, na exibição separada do arqueológico e do etnográfico.

Rumo a uma teoria social do patrimônio

- As evidencias de que o patrimônio histórico é um dos cenários fundamentais para a produção de valor, da identidade e da distinção dos setores hegemônicos modernos, sugerem recorrer a teorias sociais que pensaram essas questões de um modo menos complacente.
- Se considerarmos os usos do patrimônio a partir dos estudos sobre reprodução cultural e desigualdade social, vemos que os bens reunidos na história por cada sociedade não pertencem realmente a todos, mesmo que formalmente pareçam ser de todos e estejam disponíveis para que todos os usem.
- As investigações sociológicas e antropológicas sobre as maneiras pelas quais se transmite o saber de cada sociedade através das escolas e museus demonstram que diversos grupos se apropriaram de formas diferentes e desiguais da herança cultural – a medida que descemos na escala econômica e educacional diminui a capacidade de apropriar-se do capital cultural transmitido por essas instituições.
- essa capacidade diferenciada de relacionar-se com o patrimônio se origina, em primeiro lugar, na maneira desigual pela qual os grupos sociais participam de sua formação e manutenção.
- Mesmo nos países em que o discurso oficial adota a noção antropológica de cultura, aquele que confere legitimidade a todas as formas de organizar e simbolizar a vida social, existe uma hierarquia dos capitais culturais: a arte vale mais que o artesanato, a medicina científica mais que a popular, a cultura escrita mais que a transmitida oralmente. Mesmo nos países mais democráticos, os capitais simbólicos dos grupos subalternos, têm um lugar, mas um lugar subordinado, secundário, ou à margem das instituições e dos dispositivos hegemônicos. Por isso a reformulação do patrimônio em termos de capital cultural tem a vantagem de não representá-lo como um conjunto de bens estáveis e neutros, com valores e sentidos fixados de uma vez para sempre, mas como um processo social que, com o outro capital, acumula-se, reestrutura-se, produz rendimentos e é apropriado de maneira desigual por diversos setores.
- Ainda que o patrimônio sirva para unificar cada nação, as desigualdades em sua formação e apropriação exigem estudá-lo também como espaço de luta  material e simbólica entre as classes, as etnias e os grupos.
- Na atualidade, as diferenças regionais e setoriais, originadas pela heterogeneidade de experiências e pela divisão técnica e social do trabalho, são utilizadas pelas classes hegemônicas para obter uma apropriação privilegiada do patrimônio comum.
 - O patrimônio cultural funciona como recurso para reproduzir as diferenças entre os grupos sociais e a hegemonia dos que conseguem um acesso preferencial à produção e à distribuição de bens.- Os setores dominantes não apenas definem que bens são superiores e merecem ser conservados como também dispõe dos meios econômicos e intelectuais, do tempo de trabalho e do ócio, para imprimir a esse bens maior qualidade e refinamento.
- Os produtos gerados pelas classes populares costumam ser mais representativos da história local e mais adequados às necessidades presentes do grupo que os fabrica. Constituem, nesse sentido, seu patrimônio próprio.- (...) a desigualdade estrutural impede de reunir todos os requisitos indispensáveis para intervir plenamente no desenvolvimento do patrimônio em sociedades complexas.
- as vantagens das elites tradicionais na formação e nos usos do patrimônio se relativizam frente às transformações geradas pela indústrias culturais. A redistribuição maciça  dos bens simbólicos tradicionais pelos canais eletrônicos de comunicação gera interações mais fluidas entre o culto e o popular, o tradicional e o moderno.
- O discurso politico continua associando preferencialmente a unidade e a continuidade da nação com o patrimônio tradicional, com espaços e bens antigos, que serviriam para tornar coesa a população.
- O arcaico é o que pertence ao passado e é reconhecido como tal por aqueles que hoje o revivem, quase sempre de um modo “deliberadamente especializado”. Ao contrário, o residual formou-se no passado, mas ainda se encontra em atividade dentro dos processos culturais. O emergente designa os novos significados e valores, novas práticas e relações sociais.
- As politicas culturais menos eficazes são as que se aferram ao arcaico e ignoram o emergente, porque não conseguem articular a recuperação da densidade histórica com os significados recentes gerados pelas práticas inovadoras na produção e no consumo.
- Talvez a crise da forma tradicional em se pensar o patrimônio se manifeste de forma mais aguda em sua valorização estética e filosófica. O critério fundamental é o da autenticidade.- Segundo  o autor tal critério é empregado na bibliografia sobre patrimônio para demarcar  o universo de bens e práticas que merece ser considerado pelos cientistas sociais e pelas políticas culturais. é como se não pudesse se levar em conta que a atual circulação e consumo dos bens simbólicos limitou as condições de produção que em outro tempo tornaram possível o mito da originalidade, tanto na arte de elites e na popular, quanto no patrimônio cultural tradicional.
- Houve uma época que os museus produziam cópias de obras antigas para expô-las à intempéries e ao contato com visitantes. Depois a reprodução das pinturas esculturas e objetos tentou levar os museus à educação e ao mercado turístico. Em muitos casos, as novas peças, feitas por arqueólogos ou técnicos em restauração, alcançam tal fidelidade que se torna quase impossível diferenciá-las do original.
- A diferença entre original e cópia é essencial para a investigação científica e artística da cultura. Também importa diferencia-los na difusão do patrimônio. Não há por que confundir o reconhecimento do valor de certos bens com a utilização conservadora que fazem deles algumas tendências políticas. Existem objetos e práticas que merecem ser especialmente valorizados porque representam descobertas para o saber, inovações formais e sensíveis ou acontecimentos fundadores na história de um povo. Mas esse reconhecimento não tem por que levar a fazer do autêntico o núcleo de uma concepção arcaizante da sociedade e pretender que os museus, como templos ou parques nacionais do espirito, sejam guardiões da verdadeira cultura, refugio frente à adulteração que nos afligiria na sociedade de massa.
- a oposição maníaca dos conservadores entre o passado tido como sacro e um presente profano que banaliza a herança, apresenta pelo menos duas dificuldades: 1 – idealiza algum momento passado e propõe como paradigma sociocultural do presente, decide que todos os testemunhos atribuídos são autênticos e guardam por isso um poder estético, religioso ou mágico insubstituível. As refutações da autenticidade sofridas por tantos fetiches históricos nos obrigam a ser menos ingênuos. 2 – esquece que toda cultura é resultado de uma seleção e de uma combinação, sempre renovada de duas fontes. Ou seja, é produto de uma encenação, na qual se escolhe e se adapta o que vai ser representado, de acordo com o que os receptores podem escutar ver e compreender. As representações culturais, desde os relatos populares até os museus, nunca apresentam os fatos, nem cotidianos nem transcendentais, são sempre reapresentações, teatro, simulacro. Só a fé cega fetichiza os objetos e as imagens acreditando que neles está depositada a verdade.
- De acordo com Canclini, um testemunho ou um objeto, podem ser mais verossímeis e, portanto significativos, para aqueles que se relacionam com ele questionando qual o seu sentido atual. Esse sentido pode circular e ser captado através de uma reprodução cuidada, com explicações que situem a peça em seu contorno sociocultural, com uma museografia mais interessada em reconstruir seu significado que em promove-la como espetáculo ou fetiche . Ao contrário, um objeto original pode ocultar o sentido que teve porque está descontextualizado, teve cortado o seu vínculo com a dança ou com a comida na qual era usado e foi-lhe atribuída uma autonomia, inexistente aos seus primeiros detentores.
- Para elaborar o sentido histórico e cultural de uma sociedade, é importante estabelecer, se possível, o sentido original que os bens culturais tiveram e diferenciar os originais das imitações.
- A politica cultural e da pesquisa relacionada ao patrimônio, não tem porque reduzir sua tarefa ao resgate dos objetos autênticos de uma sociedade. Parece que deve importar-nos mais os processos do que os objetos e não sua capacidade de permanecer “puros”, iguais a si mesmos, mas por sua representatividade sociocultural. Nessa perspectiva, a investigação, a restauração e a difusão do patrimônio não teriam por finalidade central almejar a autenticidade ou restabelecê-la, mas reconstruir a verossimilhança histórica e estabelecer bases comuns para uma elaboração de acordo com as necessidades do presente.
- De acordo com Canclini, assim como o conhecimento cientifico não pode refletir a vida, tampouco a restauração, nem a museografia, nem a difusão mais contextualizada e didática conseguirão abolir a distância entre realidade e representação. Toda operação cientifica ou pedagógica sobre patrimônio é uma metalinguagem, não faz com que as coisas falem, mas fala delas e sobre elas.
- o museu e qualquer politica patrimonial tratam os objetos, os edifícios e os costumes de tal modo que , mais que exibi-los , tornam inteligíveis as relações entre eles, propõe hipóteses sobre o que significam para nós, que hoje os vemos ou evocamos. Um patrimônio reformulado levando em conta seus usos sociais, não a partir de uma atitude defensiva, de simples resgate, mas com uma visão mais complexa de como a sociedade se apropria da história, pode envolver diversos setores.
- Não tem porque reduzir-se a um assunto de especialistas no passado, interessa aos funcionários e profissionais ocupados em construir o presente, aos indígenas, camponeses, migrantes e a todos os setores cuja identidade costuma ser afetada pelos usos modernos da cultura.
- À medida que o estudo e a promoção do patrimônio assumam os conflitos que o acompanham, podem contribuir para consolidar a nação, já não como algo abstrato, mas como o que une e torna coesos em um projeto histórico solidário – os grupos sociais preocupados com a forma como habitam seu espaço.
-  Canclini finaliza afirmando que não pode haver porvir para o nosso passado enquanto oscilamos entre os fundamentalismos  que regem frente a modernidade conquistada e os modernismos abstratos que resistem a problematizar nossa “deficiente” capacidade de sermos modernos. A contribuição pós moderna é útil para escapar desse impasse, na medida em que revela o caráter construído e teatralizado de toda tradição, inclusive a da modernidade: refuta a origem das tradições e a originalidade das inovações. Ao mesmo tempo oferece ocasião de repensar o moderno como um projeto relativo, duvidoso, não antagônico às tradições nem destinado a superá-las por alguma lei evolucionista inverificável. Servem suma para nos incumbirmos ao mesmo tempo do itinerário impuro das tradições e da realização desarticulada, heterodoxa, de nossa modernidade.