terça-feira, 1 de março de 2016

Culturas hibridas – estratégias para entrar e sair da modernidade – Néstor Canclini

1 - O por vir do passado
- Canclini questiona como o sentido histórico intervém na constituição dos agentes centrais para a constituição de identidades modernas, como as escolas e museus, qual é o papel dos ritos e das comemorações na renovação da hegemonia política.
- Resistência a modernidade – os modernizadores para legitimar sua hegemonia precisam persuadir seus destinatários que ao mesmo tempo que renovam a sociedade, prolongam as tradições compartilhadas. Posto que pretendem abarcar todos os setores, os projetos modernos se apropriam dos bens históricos e das tradições populares.
- A necessidade de apoiarem-se uns nos outros – leva a alianças frequentes entre grupos culturais e religiosos fundamentalistas com grupos econômicos e tecnocratas modernizadores – na medida em que suas posições são contraditórias, essas alianças são quebradas ou instalam tensões explosivas.
- Nos estudos e debates sobre a modernidade latino-americana a questão dos usos sociais do patrimônio continua ausente, como se o patrimônio histórico fosse de competência exclusiva dos restauradores, arqueólogos e museólogos, especialistas do passado.
- é necessário analisar as funções do patrimônio histórico para explicar por que os fundamentalismos, a idealização dogmática desses referentes aparentemente estranhos a modernidade , têm-se reativado nos últimos anos.
- o patrimônio cultural de apresenta alheio aos debates sobre a modernidade, constitui o recurso menos suspeito para garantir a cumplicidade social.
- Pois esse conjunto de práticas tradicionais que nos identificam como nação ou povo , é apreciado como um dom, algo que recebemos do passado com tal prestigio simbólico que não cabe discuti-lo – as únicas operações possíveis são preserva-los, restaurá-los, difundi-los – são a base mais secreta da simulação social que nos mantem juntos.
- A perenidade desses bens leva a imaginar que seu valor é inquestionável e torna-os fontes do consenso coletivo, para além das divisões entre classes, etnias e grupos que cindem a sociedade e diferenciam os modos de apropriar-se do patrimônio.
- O patrimônio é o lugar onde melhor sobrevive, hoje, a ideologia dos setores oligárquicos.
- A conservação desses bens arcaicos, teria pouco a ver com a sua utilidade atual. Preservar um lugar histórico, certos móveis e costumes, é uma tarefa sem outro fim que o de guardar modelos estéticos e simbólicos. Sua conservação inalterada testemunharia que a essência desse passado glorioso sobrevive às mudanças.

2.A teatralização do poder

- Entender as relações da modernidade com o passado requer examinar as operações de ritualização cultural.
- o patrimônio existe como força politica na medida em que ele é teatralizado: em comemorações, monumentos e museus. Na América latina o analfabetismo tornou possível que a cultura fosse predominantemente visual.
- Ser culto então é apreender um conjunto de conhecimentos , em grande medida icônicos , sobre a própria história e também participar dos palcos em que os grupos hegemônicos fazem com que a sociedade apresente para si mesma o espetáculo de sua origem.
- Canclini pretende deter-se principalmente na construção visual e cênica da significação diferentemente das analises habituais sobre ideologia.
- Canclini cita o fato de que a teatralização da vida cotidiana e do poder foi estudada há poucos anos por interacionistas simbólicos e estruturalistas, mas já havia sido reconhecida por escritores e filósofos que viram nela elemento fundamental na constituição da burguesia, dos burgos, da cidade. Existindo antecedentes da concepção de vida como teatro já em Platão, Nas leis e no Satiricon de Petrônio. Mas o que lhe interessa é o sentido moderno de encenação que alguns homens realizam diante de outros homens, da maneira como começaram a observar Diderot, Rousseau e Balzac: a atuação social como encenação, simulacro, espelho de espelhos, sem modelo original.
- A teatralização do patrimônio é o esforço para simular que há uma origem, uma substância fundadora em relação a qual deveríamos atuar hoje. Essa é a base das políticas sociais autoritárias.  “O mundo é um palco, mas o que deve ser representado já está prescrito.” As práticas e os objetos valiosos encontram-se catalogados em um repertório fixo. Ser culto implica conhecer esse repertório de bens simbólicos e intervir corretamente nos rituais que o reproduzem. Por isso as noções de coleção e ritual são fundamentais para desmontar vínculos entre cultura e poder.
- O fundamento filosófico do tradicionalismo se resume na certeza de que há uma coincidência ontológica entre a realidade e representação, entre a sociedade e as coleções de símbolos que a representam. O que se defini por patrimônio e identidade  pretende ser o reflexo fiel da essência nacional.
- Celebra-se o patrimônio histórico constituído pelos acontecimentos fundadores, os heróis que os protagonizaram e os objetos fetichizados que os evocam. Os ritos legítimos são os que encenam o desejo de repetição e perpetuação da ordem.
- As relações entre governo e povo consistem na encenação do que se supõe ser o patrimônio definitivo da nação. Os políticos e os sacerdotes são os atores vicários desse drama.
- De acordo com Canclini : “ hoje sabemos que toda política é feita, em parte, com recursos teatrais: as inaugurações do que não se sabe se vai ter fundos para funcionar, as promessas do que não se pode cumprir, o reconhecimento público dos direitos que serão negados em privado.”
- O sentido dramático da comemoração é acentuado pelos silêncios enquanto se oferece o palco ritual para que todos compartilhem um saber que é um conjunto de subentendidos. (...) Todo grupo que quer diferenciar-se e afirmar sua identidade faz uso tácito ou hermético de códigos de identificação fundamentais para coesão interna e para proteger-se frente a estranhos.
- Nos regimes conservadores a politica cultural costuma reduzir-se à administração do patrimônio preexistente e à reiteração de interpretações estabelecidas, (...) buscam uma maior identificação do publico alvo com o capital cultural acumulado, com sua distribuição e usos vigentes. Para o conservadorismo patrimonialista o fim último da cultura é converter-se em natureza. Ser natural como um dom.
- A escola é um palco fundamental para a teatralização do patrimônio. Transmite em cursos sistemáticos o saber sobre os bens que constituem o acervo natural e histórico. (...) a excessiva ritualização , como único paradigma , usado dogmaticamente , condiciona seus praticantes para que se comportem de maneira uniforme em contextos idênticos e incapacita para agir quando as perguntas são diferentes e os elementos da ação estão articulados de outra maneira.
- Nos processos sociais, as relações altamente ritualizadas com um único e excludente patrimônio histórico – nacional ou regional – dificultam o desempenho em situações mutáveis, as aprendizagens autônomas e a produção de inovações. O tradicionalismo substancialista incapacita para viver no mundo contemporâneo, que se caracteriza, de acordo com o autor por sua heterogeneidade, mobilidade e desterritorialização.
- O tradicionalismo aparece muitas vezes como recurso para suportar as contradições contemporâneas. (...) Frente à impotência para enfrentar as desordens sociais, o empobrecimento econômico e os desafios tecnológicos, frente a dificuldade para entendê-los, a evocação de tempos remotos  reinstala na vida contemporânea arcaísmo que a modernidade havia substituído. A comemoração se torna uma prática compensatória: se não podemos competir com as tecnologias avançadas celebremos nosso artesanato e técnicas antigas; se os paradigmas ideológicos modernos parecem inúteis para dar conta do presente e não surgem novos, reconsagremos os dogmas religiosos ou os cultos esotéricos que fundamentaram a vida antes da modernidade.
- As mudanças na concepção do museu-inserção nos centros culturais, criação dos ecomuseus, de museus comunitários, escolares , de sítio e várias inovações cênicas e comunicacionais ( ambientações, serviços educacionais, introdução de vídeo...) impedem de continuar falando dessas instituições como simples depósitos do passado. – Hoje devemos reconhecer que as alianças involuntárias ou deliberadas, dos museus com os meios de comunicação de massa e o turismo foram mais eficazes para a difusão cultural que as tentativas dos artistas de levar a artes as ruas.
- A crise do museus não se encerrou, uma caudalosa bibliografia continua indagando sobre o obstinado anacronismo de muitos deles e sobre a violência que exercem sobre os bens culturais ao arrancá-los de seu texto originário e reorganizá-los sob uma visão espetacular da vida. São debatidas as mudanças de que necessita uma instituição, marcada desde a sua origem pelas estratégias mais elitistas, para rever sua posição na industrialização e democratização da cultura.
- As ações tardias a favor do patrimônio costumam ser obra da sociedade civil, de empresas privadas ou grupos comunitários.(...) em alguns países que conseguiram construir bons museus de história e de arte, grande parte deles pertence a bancos, fundações e associações não estatais. concentram-se nas grandes cidades, atuam sem conexão entre si e com o sistema educativo em parte porque dependem de órgãos particulares e também pela falta de uma politica cultural orgânica a nível nacional. Servem mais como conservadores de uma pequena porção de patrimônio, como recurso de promoção turística e publicidade de empresas privadas do que como formadores de uma cultura visual coletiva.
- A partir dos anos de 1950, quando se institucionalizou a revolução e as correntes modernizadoras se impuseram na politica governamental, o patrimônio foi organizado em museus diferenciados. O desenvolvimento industrial e turístico, a maior profissionalização de artistas e cientistas sociais contribuíram para separar o histórico do artístico, o tradicional do moderno, o culto do popular. A fim de criar espaços próprios de consagração e exibição, para cada setor surgiu uma complexa rede de museus que se multiplicaram a cada seis anos e constituem, junto com as escolas e os meios de comunicação de massa, os cenários para classificação e valorização dos bens culturais.
- Com o objetivo de compreender as estratégias com que os particulares e o Estado põe em cena o patrimônio cultural, Canclini analisa dois casos representativos das políticas museográficas desenvolvidas no México, escolhidas, segundo o autor, porque coincidem com as ensaiadas em outros países latino-americanos para inserir o culto tradicional na modernidade.
- A primeira estratégia é a espiritualização esteticista do patrimônio. A segunda é a ritualização histórica e antropológica. Caclini ressalta que analisará as duas politicas com a intenção de averiguar se seus modos de consagrar a cultura nacional podem sustentar-se nessa época de crise radical dos nacionalismos.
- A estetização do patrimônio – os objetos antigos são separados das relações sócias para as quais foram produzidos; são impostos a culturas que integravam a arte e a religião, a politica e a economia, os critérios de autonomização das esculturas e quadros inaugurados pela estética moderna; os objetos se convertem em obras e seu valor se reduz ao jogo formal que estabelecem graças a vizinhança com outros nesse espaço neutro, aparentemente fora da história, que é o museu. Desvinculadas das referencias semânticas e pragmáticas, essas peças são vistas segundo o sentido que as relações estéticas lhes fixam, que estabelece entre elas a sintaxe arbitrária do programa de exposição.
- A museografia esteticista não expulsa a cerimonialidade do museu. Cria outro tipo de ritual, não o que dava sentido social a essas peças, mas o desses templos laicos fundados para celebrar a supremacia do olhar culto. A solenidade dos edifícios, a complexidade das mensagens que transmitem as dificuldades, para entende-los obrigam a atuar neles como quem representa docilmente um texto dramático que prescreve a maneira pelo qual o visitante deve mover-se, falar e sobretudo , calar, se quiser que sua ação tenha sentido.
- De acordo Canclini, é inegável que esse tipo de museu contribui para aproximar as culturas, fazê-las conhecer-se entre si e dar-nos provas visuais de uma história universal comum. Ao tornar patente que nosso povo e nossos antigos artistas tem uma história criativa, mas ao mesmo tempo não são os únicos que criam, devemos a eles ter feito oscilar as mesquinhas certezas do etnocentrismo muito antes que os meios de comunicação de massa.
- “ a fascinação frente a beleza, anula o assombro frente ao diferente” – Pede-se a contemplação, não o esforço que deve fazer quem chega a outra sociedade e precisa aprender sua língua, suas maneiras de cozinhar e de comer, de trabalhar e alegrar-se. Esse museus servem pouco para relativizar os próprios hábitos, porque não se parecem com o antropólogo que ao ir para um outro grupo se descentra de seu universo; assemelham-se mais ao computador ou ao vídeo que trazem informação para nossa casa e adaptam aos esquemas conhecidos. Entregam aos familiarizados com a estética culta uma visão doméstica da cultura universal.
- Museu nacional de antropologia mexicano ( representa  unificação estabelecida pela nacionalismo politico no México contemporâneo ) monumentalização (concentração de objetos grandiosos e diversos) e ritualização nacionalista – os monumentos mais enfáticos são os que se referem a acontecimentos fundadores da nação – a retórica monumentalista não foi construída somente com o gigantesco ,mas por seu contraste com o pequeno. – Esse museu propõe uma versão monumentalizada do patrimônio mediante a exibição de peças gigantes, a evocação mitificada de cenas reais e o acúmulo de miniaturas. A maior façanha do museu reside em dar uma visão tradicionalista da cultura mexicana dentro de um invólucro arquitetônico moderno e usando técnicas museográficas recentes. Tudo leva a exaltar o patrimônio arcaico, supostamente puro e autônomo, sem impor de forma dogmática essa perspectiva. Apresenta-o de um modo aberto, que permite, ao mesmo tempo admirar o monumental e deter-se em uma relação reflexiva, por momentos íntima, com o que exibe.
- De acordo com Canclini essas duas oscilações – monumentalização e miniaturarização – entre exterior e interior – São complementares. A história se enlaça com a cotidianidade graças ao fato de o que a realidade apresenta de indefinido e indefinível é assimilado pela duplicação imaginária da museografia.
- O museu de antropologia do México torna visíveis ainda outras operações fundamentais no tratamento moderno do patrimônio , amplia o repertório incluindo o popular. Mais ainda : diz que a cultura nacional tem sua fonte e seu eixo no indígena. Essa abertura se faz , contudo, estabelecendo limites para o étnico, equivalentes aos que se praticam nas relações sociais.( Separação da cultura antiga da cultura atual – utilizando a diferença entre arqueologia e etnografia) – é um museu onde as pautas científicas organizam o material e dão explicações consistentes. Onde se reproduz a especialização das ciências antropológicas, na exibição separada do arqueológico e do etnográfico.

Rumo a uma teoria social do patrimônio

- As evidencias de que o patrimônio histórico é um dos cenários fundamentais para a produção de valor, da identidade e da distinção dos setores hegemônicos modernos, sugerem recorrer a teorias sociais que pensaram essas questões de um modo menos complacente.
- Se considerarmos os usos do patrimônio a partir dos estudos sobre reprodução cultural e desigualdade social, vemos que os bens reunidos na história por cada sociedade não pertencem realmente a todos, mesmo que formalmente pareçam ser de todos e estejam disponíveis para que todos os usem.
- As investigações sociológicas e antropológicas sobre as maneiras pelas quais se transmite o saber de cada sociedade através das escolas e museus demonstram que diversos grupos se apropriaram de formas diferentes e desiguais da herança cultural – a medida que descemos na escala econômica e educacional diminui a capacidade de apropriar-se do capital cultural transmitido por essas instituições.
- essa capacidade diferenciada de relacionar-se com o patrimônio se origina, em primeiro lugar, na maneira desigual pela qual os grupos sociais participam de sua formação e manutenção.
- Mesmo nos países em que o discurso oficial adota a noção antropológica de cultura, aquele que confere legitimidade a todas as formas de organizar e simbolizar a vida social, existe uma hierarquia dos capitais culturais: a arte vale mais que o artesanato, a medicina científica mais que a popular, a cultura escrita mais que a transmitida oralmente. Mesmo nos países mais democráticos, os capitais simbólicos dos grupos subalternos, têm um lugar, mas um lugar subordinado, secundário, ou à margem das instituições e dos dispositivos hegemônicos. Por isso a reformulação do patrimônio em termos de capital cultural tem a vantagem de não representá-lo como um conjunto de bens estáveis e neutros, com valores e sentidos fixados de uma vez para sempre, mas como um processo social que, com o outro capital, acumula-se, reestrutura-se, produz rendimentos e é apropriado de maneira desigual por diversos setores.
- Ainda que o patrimônio sirva para unificar cada nação, as desigualdades em sua formação e apropriação exigem estudá-lo também como espaço de luta  material e simbólica entre as classes, as etnias e os grupos.
- Na atualidade, as diferenças regionais e setoriais, originadas pela heterogeneidade de experiências e pela divisão técnica e social do trabalho, são utilizadas pelas classes hegemônicas para obter uma apropriação privilegiada do patrimônio comum.
 - O patrimônio cultural funciona como recurso para reproduzir as diferenças entre os grupos sociais e a hegemonia dos que conseguem um acesso preferencial à produção e à distribuição de bens.- Os setores dominantes não apenas definem que bens são superiores e merecem ser conservados como também dispõe dos meios econômicos e intelectuais, do tempo de trabalho e do ócio, para imprimir a esse bens maior qualidade e refinamento.
- Os produtos gerados pelas classes populares costumam ser mais representativos da história local e mais adequados às necessidades presentes do grupo que os fabrica. Constituem, nesse sentido, seu patrimônio próprio.- (...) a desigualdade estrutural impede de reunir todos os requisitos indispensáveis para intervir plenamente no desenvolvimento do patrimônio em sociedades complexas.
- as vantagens das elites tradicionais na formação e nos usos do patrimônio se relativizam frente às transformações geradas pela indústrias culturais. A redistribuição maciça  dos bens simbólicos tradicionais pelos canais eletrônicos de comunicação gera interações mais fluidas entre o culto e o popular, o tradicional e o moderno.
- O discurso politico continua associando preferencialmente a unidade e a continuidade da nação com o patrimônio tradicional, com espaços e bens antigos, que serviriam para tornar coesa a população.
- O arcaico é o que pertence ao passado e é reconhecido como tal por aqueles que hoje o revivem, quase sempre de um modo “deliberadamente especializado”. Ao contrário, o residual formou-se no passado, mas ainda se encontra em atividade dentro dos processos culturais. O emergente designa os novos significados e valores, novas práticas e relações sociais.
- As politicas culturais menos eficazes são as que se aferram ao arcaico e ignoram o emergente, porque não conseguem articular a recuperação da densidade histórica com os significados recentes gerados pelas práticas inovadoras na produção e no consumo.
- Talvez a crise da forma tradicional em se pensar o patrimônio se manifeste de forma mais aguda em sua valorização estética e filosófica. O critério fundamental é o da autenticidade.- Segundo  o autor tal critério é empregado na bibliografia sobre patrimônio para demarcar  o universo de bens e práticas que merece ser considerado pelos cientistas sociais e pelas políticas culturais. é como se não pudesse se levar em conta que a atual circulação e consumo dos bens simbólicos limitou as condições de produção que em outro tempo tornaram possível o mito da originalidade, tanto na arte de elites e na popular, quanto no patrimônio cultural tradicional.
- Houve uma época que os museus produziam cópias de obras antigas para expô-las à intempéries e ao contato com visitantes. Depois a reprodução das pinturas esculturas e objetos tentou levar os museus à educação e ao mercado turístico. Em muitos casos, as novas peças, feitas por arqueólogos ou técnicos em restauração, alcançam tal fidelidade que se torna quase impossível diferenciá-las do original.
- A diferença entre original e cópia é essencial para a investigação científica e artística da cultura. Também importa diferencia-los na difusão do patrimônio. Não há por que confundir o reconhecimento do valor de certos bens com a utilização conservadora que fazem deles algumas tendências políticas. Existem objetos e práticas que merecem ser especialmente valorizados porque representam descobertas para o saber, inovações formais e sensíveis ou acontecimentos fundadores na história de um povo. Mas esse reconhecimento não tem por que levar a fazer do autêntico o núcleo de uma concepção arcaizante da sociedade e pretender que os museus, como templos ou parques nacionais do espirito, sejam guardiões da verdadeira cultura, refugio frente à adulteração que nos afligiria na sociedade de massa.
- a oposição maníaca dos conservadores entre o passado tido como sacro e um presente profano que banaliza a herança, apresenta pelo menos duas dificuldades: 1 – idealiza algum momento passado e propõe como paradigma sociocultural do presente, decide que todos os testemunhos atribuídos são autênticos e guardam por isso um poder estético, religioso ou mágico insubstituível. As refutações da autenticidade sofridas por tantos fetiches históricos nos obrigam a ser menos ingênuos. 2 – esquece que toda cultura é resultado de uma seleção e de uma combinação, sempre renovada de duas fontes. Ou seja, é produto de uma encenação, na qual se escolhe e se adapta o que vai ser representado, de acordo com o que os receptores podem escutar ver e compreender. As representações culturais, desde os relatos populares até os museus, nunca apresentam os fatos, nem cotidianos nem transcendentais, são sempre reapresentações, teatro, simulacro. Só a fé cega fetichiza os objetos e as imagens acreditando que neles está depositada a verdade.
- De acordo com Canclini, um testemunho ou um objeto, podem ser mais verossímeis e, portanto significativos, para aqueles que se relacionam com ele questionando qual o seu sentido atual. Esse sentido pode circular e ser captado através de uma reprodução cuidada, com explicações que situem a peça em seu contorno sociocultural, com uma museografia mais interessada em reconstruir seu significado que em promove-la como espetáculo ou fetiche . Ao contrário, um objeto original pode ocultar o sentido que teve porque está descontextualizado, teve cortado o seu vínculo com a dança ou com a comida na qual era usado e foi-lhe atribuída uma autonomia, inexistente aos seus primeiros detentores.
- Para elaborar o sentido histórico e cultural de uma sociedade, é importante estabelecer, se possível, o sentido original que os bens culturais tiveram e diferenciar os originais das imitações.
- A politica cultural e da pesquisa relacionada ao patrimônio, não tem porque reduzir sua tarefa ao resgate dos objetos autênticos de uma sociedade. Parece que deve importar-nos mais os processos do que os objetos e não sua capacidade de permanecer “puros”, iguais a si mesmos, mas por sua representatividade sociocultural. Nessa perspectiva, a investigação, a restauração e a difusão do patrimônio não teriam por finalidade central almejar a autenticidade ou restabelecê-la, mas reconstruir a verossimilhança histórica e estabelecer bases comuns para uma elaboração de acordo com as necessidades do presente.
- De acordo com Canclini, assim como o conhecimento cientifico não pode refletir a vida, tampouco a restauração, nem a museografia, nem a difusão mais contextualizada e didática conseguirão abolir a distância entre realidade e representação. Toda operação cientifica ou pedagógica sobre patrimônio é uma metalinguagem, não faz com que as coisas falem, mas fala delas e sobre elas.
- o museu e qualquer politica patrimonial tratam os objetos, os edifícios e os costumes de tal modo que , mais que exibi-los , tornam inteligíveis as relações entre eles, propõe hipóteses sobre o que significam para nós, que hoje os vemos ou evocamos. Um patrimônio reformulado levando em conta seus usos sociais, não a partir de uma atitude defensiva, de simples resgate, mas com uma visão mais complexa de como a sociedade se apropria da história, pode envolver diversos setores.
- Não tem porque reduzir-se a um assunto de especialistas no passado, interessa aos funcionários e profissionais ocupados em construir o presente, aos indígenas, camponeses, migrantes e a todos os setores cuja identidade costuma ser afetada pelos usos modernos da cultura.
- À medida que o estudo e a promoção do patrimônio assumam os conflitos que o acompanham, podem contribuir para consolidar a nação, já não como algo abstrato, mas como o que une e torna coesos em um projeto histórico solidário – os grupos sociais preocupados com a forma como habitam seu espaço.
-  Canclini finaliza afirmando que não pode haver porvir para o nosso passado enquanto oscilamos entre os fundamentalismos  que regem frente a modernidade conquistada e os modernismos abstratos que resistem a problematizar nossa “deficiente” capacidade de sermos modernos. A contribuição pós moderna é útil para escapar desse impasse, na medida em que revela o caráter construído e teatralizado de toda tradição, inclusive a da modernidade: refuta a origem das tradições e a originalidade das inovações. Ao mesmo tempo oferece ocasião de repensar o moderno como um projeto relativo, duvidoso, não antagônico às tradições nem destinado a superá-las por alguma lei evolucionista inverificável. Servem suma para nos incumbirmos ao mesmo tempo do itinerário impuro das tradições e da realização desarticulada, heterodoxa, de nossa modernidade.





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