Por Bianca Wild
Apreender
o sentido do que hoje somos é muito mais do que um desafio, constituísse num
longo e detalhado processo de trabalho. A reflexão sobre a nossa formação nos
remete às nossas origens, à história que como brasileiros, fomos construindo. A
realidade na qual nos encontramos traz reflexões e pontos de vista provenientes
de outros contextos.
No que tange esse desafio de nos tornar
“explicáveis” Darcy Ribeiro indica um conjunto teórico a partir do nosso
contexto histórico. Ribeiro reúne um conjunto de pesquisas que culminam em uma
teoria do Brasil até então inédita. Subjacente à descrição desta teoria, está
sua preocupação em entender por que caminhos passamos, que nos levaram a
diferenças sociais tão profundas no processo de formação nacional.
Os brasileiros entendem-se, se sabem, se
sentem e se comportam como uma só gente, pertencente a uma mesma etnia, será?
Essa unidade não significa porém nenhuma uniformidade. O homem se adaptou ao
meio ambiente e criou modos de vida diferentes, tolerância, convivência,
civilidade, etc. A urbanização contribuiu para uniformizar os brasileiros, sem
eliminar suas diferenças. Fala-se em todo o país uma mesma língua, um mesmo
idioma só diferenciado por sotaques e gírias regionais. Mais do que uma junção
de etnias formando uma etnia única, a brasileira, o Brasil é um povo nação,
ajustado em um território próprio para nele “fazer” seu destino.
Foi essa gente composta de índios,
negros, mulatos, que fundou esse país. Ao longo da costa brasileira se
encontraram duas visões de mundo completamente opostas: a “selvageria” e a
“civilização”. Concepções diferentes de mundo, da vida, da morte, do amor, se
chocaram. Para os europeus os indígenas pareciam belos seres inocentes, que não
tinham noção de "pecado", porém com um grande defeito: eram
"vadios", preguiçosos não produziam nada que pudesse ter valor
comercial. Serviam apenas para ser vendidos como escravos. Com a descoberta de
que as matas estavam cheias de pau-brasil, mudaram o foco de seus interesses.
Era necessária mão-de-obra para retirar a madeira.
Ocorreu uma forma de miscigenação ao meu
entender um tanto quanto opressora, onde houvesse algum europeu alojado na
costa em contato com as naus, e que
pudesse viabilizar o fornecimento de mercadorias das quais os indígenas já
haviam se tornado até certo ponto, dependentes, cada aldeia levava uma moça
para casar-se com os respectivos europeus. Se ele mantivesse relações sexuais
com a moça, então ele se tornava “cunhado”, e passava a ter sogro, sogra,
genros, passava então a ser parente. Então o português e os europeus,
conseguiram desse modo pôr milhares de índios a serviço deles, para a extração
e carregamento de pau-brasil.
O branco penetrou na cultura indígena
através deste tal "cunhadismo", por meio desse costume foi iniciada a
formação do povo brasileiro. E da união das índias com os europeus nasceu um
povo mestiço que efetivamente ocupou o Brasil. Na barriga das mulheres
indígenas cresciam indivíduos que não eram indígenas, mulheres emprenhadas
pelos portugueses, pariam meninos e meninas que sabiam que não eram índios e
nem europeus, pois os europeus não os aceitavam como iguais. O que eram então?
Eram uma gente vazia? O que significavam eles do ponto de vista étnico? Estes
mestiços consistiam a matéria - prima com a qual se formaria no futuro o povo
brasileiro.
É admissível até que a colonização pudesse
ser feita através do desenvolvimento dessa prática, tinha o defeito, porém
(para os portugueses), de ser acessível a qualquer europeu desembarcado junto às
aldeias indígenas. Isso efetivamente ocorreu, pondo em movimento um número
crescente de navios e incorporando os indígenas ao sistema mercantil de
produção. Para Portugal é que representou uma ameaça, já que estava perdendo
sua conquista para armadores franceses, holandeses, ingleses e alemães, cujos
navios já sabiam onde buscar sua carga.
Sabemos que um dos primeiros e principais
núcleos povoadores surgiu em São Paulo, chefiado pelo português João Ramalho,
alguns afirmam que ele havia chegado ao planalto paulista antes de Cabral. Os
registros da época supõem que ele teve mais de trinta mulheres índias e quase
oitenta filhos (as) mestiços. A ocupação e o consequente povoamento se
iniciaram a partir do litoral. Na Bahia, Pernambuco, Espírito Santo e no Rio de
Janeiro, em toda a extensão litorânea os europeus geraram um exército de
mestiços, chamados de mamelucos pelos jesuítas espanhóis, por causa da
aparência agreste e rústica e da violência com que capturavam e escravizavam os
indígenas, de quem eram descendentes.
Esses mamelucos aprenderam o nome das
árvores, dos bichos, batizaram os rios, aprenderam e dominaram superficialmente
a sabedoria milenar dos índios. Em dez mil anos os índios aprenderam a viver na
floresta tropical, identificaram mais de sessenta tipos de árvores frutíferas,
domesticaram muitas plantas, essas que conhecemos hoje: mandioca, milho,
amendoim, dentre muitas outras. Há duas contribuições fundamentais nesse
encontro: uma mestiçagem do corpo e uma mestiçagem da cultura. Em nós vivem
milhões de índios, índios que foram abatidos porque a brutalidade do branco com
o índio foi terrível. Abatidos porque o branco europeu tinha muitas doenças.
Considera-se
que na ocasião em que chegaram os portugueses em terras brasileiras havia cinco
milhões de indígenas, dois séculos mais tarde não chegavam a dois milhões. Em
cinco séculos desapareceram para sempre cerca de oitocentas etnias. Eram povos
de diferentes culturas, que ocupavam amplos territórios de características
geográficas distintas. Hoje, os sobreviventes somam duzentos e setenta mil
habitantes ou talvez menos.
Era uma sociedade que, por ser mais
pobre, era também mais igualitária. A miscigenação era livre, porque quase não
havia entre eles quem não fosse mestiço. Até meados do século XVIII essa gente
falava uma língua aprendida com os índios, o “nheengatu”. Um jeito de falar
tupi com boca de português, inventado pelos padres jesuítas.
Em
sua peregrinação, os paulistas foram ampliando o tamanho do Brasil, na
esperança de encontrar minérios, eles buscavam no fundo das matas a única
mercadoria que estava ao seu alcance: os indígenas. As bandeiras partiam de São
Paulo levando mais de duas mil pessoas, homens e mulheres, famílias inteiras de
mestiços que iam fazendo roças pelo caminho, fundando vilarejos, caçando e
pescando para comer, ignoraram as fronteiras portuguesas para aprisionar os
habitantes da terra, e vendê-los como escravos aos engenhos do nordeste. E não
pouparam sequer os índios convertidos à fé católica que habitavam as missões
jesuíticas do sul do país e do Paraguai.
No final do século XVII, a descoberta de
ouro pelos paulistas nas terras do interior modificou os caminhos do Brasil
Colônia, em menos de dez anos, chegaram à região das Minas mais de 30 mil pessoas,
vindas de todo o país, paulistas, baianos, senhores de engenho falidos e,
sobretudo, escravos; muitos morriam de fome com o ouro nas mãos, já que não
havia o que comer. Os tropeiros asseguravam a sobrevivência vendendo comida e
panos de algodão. Atraídos pelo ouro, muitos se fixaram no cruzamento das rotas
de comércio e estabeleceram os primeiros povoamentos e assim abriram caminho
para a ocupação do interior do país.
Setenta anos depois, a capitania de
Minas Gerais já era a área mais populosa da América, com trezentos mil
habitantes, pessoas que vinham atrás de fortuna, como os garimpeiros. A
descoberta do ouro mudou completamente a vida da colônia. A mineração
enfraqueceu a indústria açucareira, que era a principal atividade econômica. A
sociedade estava estruturada nos moldes da fazenda, da casa-grande e da
senzala. O país progredia graças ao trabalho escravo de três milhões de negros.
O açúcar, no entanto, começou neste período a sofrer concorrência das Antilhas.
A grande contribuição da cultura
portuguesa aqui foi fazer o engenho de açúcar movido por mão-de-obra escrava,
ou seja, foi introduzir a utilização da mão de obra escrava e o tráfico
negreiro traçando assim um modo de produção escravista ou escravocrata. Por
isso, começaram a trazer milhões de escravos da África. O negócio maior do
mercado mundial era a venda de açúcar e depois a remessa de ouro
(mercantilismo). Mas a despesa maior era a compra de escravos. Os europeus iam
à África e faziam grandes expedições de caça de negros, metade morria na
travessia ou na brutalidade da chegada, ou mesmo por meio do chamado “banzo”,
um estado psicológico que pode ser explicado como depressão, mas milhões deles
incorporaram-se ao Brasil.
Estes negros eram provenientes de povos
diferentes, com dialetos locais, línguas locais, o único modo de um negro falar
com o outro era aprender a língua do seu capataz, que não desejava ensiná-los a
língua local temendo a ocorrência de futuras fugas e a perda do controle da
“mercadoria”, genialmente esses negros aprenderam a falar português ora com
auxilio de outros empregados da casa grande, ora com auxilio de um capataz mais
flexível, ora observando e escutando etc. Quem difundiu o português brasileiro
foi o negro, que se concentrou na área da costa de produção do açúcar e na área
do ouro. Sabemos que com os negros escravos vinham as escravas mulheres e
meninas, muitas apartadas dos maridos, noivos e filhos, custavam o preço de
dois ou três escravos de trabalho, os senhores de engenho queriam muito comprá-las,
e os capatazes também, para explora-las tanto no trabalho da casa grande como
sexualmente, logicamente essas mulheres e meninas engravidavam, e quem era essa
criança? Não era africana, não era índia e não era européia, essa criança só
encontraria uma identidade no dia em que se definisse o que é o brasileiro.
Darcy Ribeiro começa a descrever como foi
acontecendo a “gestação do Brasil” e dos brasileiros como um povo. Nessa
reconstituição ele fala da união ocorrida entre portugueses, índios e negros,
matrizes étnicas do brasileiro.
Um povo novo que, de acordo com Darcy, se
enfrentam e se fundem, fazendo surgir, "num novo modelo de estruturação
societária". Para ele, essa mestiçagem fez nascer um novo gênero humano.
Nova gente, mestiça na carne e no espírito.
Segundo Darcy essa gente fez-se
diferente:
“Novo
porque surge como uma etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas
matrizes formadoras, fortemente mestiça, dinamizada por uma cultura sincrética
e singularizada pela redefinição de traços culturais delas naturais. Também
novo porque se vê a si mesmo e é visto como uma gente nova, um novo gênero
humano diferente de quantos exista. Povo novo ainda, porque é um novo modelo de
estruturação societária, que inaugura uma forma singular de organização
socioeconômico, fundada num tipo renovado de escravismo e numa servidão
continuada ao mercado mundial. Novo, inclusive, pela inverossímil alegria e
espantosa vontade de felicidade, num povo tão sacrificado, que alenta e comove
a todos os brasileiros”. (1996, p. 19)
Ao
oposto do que se podia idealizar, um conjunto tão variado de matrizes
formadoras não resultou num conjunto multiétnico. Diz:
“...
apesar de sobreviverem na fisionomia somática e no espírito dos brasileiros os
signos de sua múltipla ancestralidade, não se diferenciaram em antagônicas
minorias raciais, culturais ou regionais, vinculadas a lealdades étnicas
próprias e disputantes de autonomia frente à nação”. (1996, p. 20)
Com pequena exceção a grupos que
sobrevivem de maneira isolada, que mantendo seus costumes, mas que, segundo
Darcy, não podem afetar a macro etnia em que se encontram.
Dessa
unidade étnica básica, ele não quer propor uma uniformidade entre os
brasileiros, ele esclarece está questão distinguindo três forças
diversificadoras: a ecológica, a econômica e a imigração. Estas formam os
fatores que tornaram presente os diferentes modos de ser dos brasileiros,
espalhados nas diversas regiões do território brasileiro.
Segundo
Darcy:
“A urbanização, apesar de criar muitos
modos citadinos de ser, contribuiu para ainda mais uniformizar os brasileiros
no plano cultural, sem, contudo, borrar suas diferenças. A industrialização,
enquanto gênero de vida que cria suas próprias paisagens humanas, plasmou ilhas
fabris em suas regiões. As novas formas de comunicação de massa estão
funcionando ativamente como difusoras e uniformizadoras de novas formas e
estilos culturais”. (1996, p. 21)
Darcy Ribeiro sugeriu deste modo que, apesar
das diferentes matrizes “racionais” nas quais se formaram os brasileiros,
também por questões culturais e por situações regionais, "os brasileiros
se sabem, se sentem e se comportam como uma só gente, pertencente a uma mesma
etnia". Formamos uma etnia nacional única, um só "povo
incorporado".
Concebeu
a história brasileira dividida em cinco formadores regionais, a cultura
crioula, cabocla, gaúcha, caipira e a cultura sertaneja. Divididas em
territórios específicos, a cultura crioula, desenvolveu-se no litoral
nordestino; a caipira, que se formou nas áreas ocupadas pelos mamelucos
paulistas; a sertaneja, desenvolvida na área que se desdobra desde o Nordeste
até os cerrados do Centro-Oeste; a cabocla, que correspondente à população
amazônica e a gaúchas, formada no sul do
país.
Ressalva que este mesmo processo ocorreu
consolidando as incompatibilidades sociais de caráter traumático. Diz:
“A
mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de
torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e
classista. Ela é que encandece, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira
predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos”.
(1996, p.120)
Para
Darcy formamos a maior presença neolatina no mundo, uma "nova Roma".
Segundo ele, melhor, porque racialmente lavada em sangue índio e em sangue
negro. Esta nossa singularidade nos condena a nos inventarmos a nós mesmos e
desafiados a construir uma sociedade inspirada na propensão indígena para o
convívio cordial e para a reciprocidade e a alegria saudável do negro
extremamente alterativo.
Darcy Ribeiro trata das características
iniciais do território brasileiro, das terras encontradas pelos portugueses que
desembarcaram pela primeira vez no ano 1500 do calendário europeu, estas terras
se encontravam povoadas por um grande número de indígenas que viviam por toda
superfície do Brasil.
Segundo
Darcy: "Eram, tão-só, uma miríade de povos tribais, falando línguas do
mesmo tronco, dialetos de uma mesma língua, cada um dos quais, ao crescer, se
bipartia, fazendo dois povos que começavam a se diferenciar e logo se
desconheciam e se hostilizavam" (1996, p. 29).
Essas
tribos aqui encontradas eram na sua maioria da família tupi, elas se
encontravam nos primeiros passos da revolução agrícola na escala da evolução
cultural. Já conseguiam domesticar diversas plantas. Com o cultivo da terra
garantiam a subsistência do ano inteiro. É importante lembrar que as aldeias
possuíam uma estrutura igualitária de convivência sem estratificação direta.
Mas, devido a colonização de suas terras, as tribos se chocavam em guerra umas
com as outras o mesmo aconteceu na colonização do território africano.
Ao contrário do modelo constituído pelas
tribos indígenas no Brasil, os portugueses invasores possuíam relações sociais
baseadas na estratificação das classes, tinham uma velha experiência como
civilização urbana. Com eles veio a Igreja católica que exerceu uma grande influência
no processo de formação sociocultural do povo brasileiro. Na visão de Darcy, a
Igreja exerceu um forte poder de mando, influenciando na vida dos indígenas e
negros.
Desde
o início houve uma fração de jesuítas que tinha uma utopia para os índios, fazê-los pios seráficos, religiosos. Eles
achavam que era o jeito de fazer o Paraíso na Terra. A religião estabeleceu-se
de fato com as filhas das índias e das negras, as mestiças, que, não podendo
satisfazer-se com a religião dos índios e dos negros, aceitavam e gostavam das
novenas, das ladainhas, das missas, das procissões, assim surgindo esse
catolicismo santeiro e festeiro.
No contexto mundial Portugal entrava na
disputa pelos novos mundos, estimulado pelas forças transformadoras da
revolução mercantil. Diz Darcy:
“Esse
complexo do poderio português vinha sendo ativado, nas últimas décadas, pelas
energias transformadoras da revolução mercantil, fundada especialmente na nova
tecnologia, concentrada na nau oceânica, com suas novas velas de mar alto, seu
leme fixo, sua bússola, seu astrolábio e, sobretudo, seu conjunto de canhões de
guerra (...) Era a humanidade mesma que entrava noutra instância de sua
existência, na qual se extinguiriam milhares de povos, com suas línguas e
culturas próprias e singulares, para dar nascimento às macro etnias maiores e
mais abrangentes que jamais se viu. (1996, p.38)”.
Era
a superação do Estado feudal, o processo civilizatório no seu momento
mercantil. Além de protagonizarem o inferno da expansão territorial
político-econômico, se intitularam propagadores da unidade dos homens numa só
cristandade. De acordo com Darcy:
“Eles
se davam ao luxo de propor-se motivações mais nobres que as mercantis,
definindo-se como os expansores da cristandade católica sobre os povos
existentes e por existir no além-mar. Pretendiam refazer o orbe em missão
salvadora, cumprindo a tarefa suprema do homem branco, para isso destinado por
Deus: juntar todos os homens numa só cristandade, lamentavelmente dividida em
duas caras, a católica e a protestante”. (1996, p.39)
Para o índio que passava a conviver com
aquela situação nova não foi nada simples compreender o que representava
aqueles acontecimentos novos. O fato é que desta colisão de culturas, surgiram
concepções que os índios estarrecidos por certo tempo sustentaram, como a de
que os recém-chegados europeus eram deuses. Não demorou muito para se
decepcionarem. Os indígenas perceberam que os recém-chegados do mar não
passavam de enganadores, mentirosos e principalmente exploradores, lhes traziam
pequenos utensílios e em troca lhes tiravam a alegria de viver, lhes entupiam
de doenças que os dizimava aos milhares.
Darcy Ribeiro assinala as duas visões de
mundo que se chocavam. Para os conquistadores essa nova terra era um espaço de
exploração em ouro e glórias, na visão dos índios, "o mundo era um luxo de
se viver, tão rico de aves, de peixes, de raízes, de frutas, de flores, de
sementes, que podiam dar as alegrias de caçar, de pescar, de plantar e colher a
quanta gente aqui viesse ter". (1996, pp. 44-45)
Enquanto
os brancos não mediam esforços para alcançar as riquezas que lhes interessavam,
os índios acreditavam que a vida era dádiva de deuses bons. Na perspectiva de
Darcy Ribeiro os brancos para os índios, eram aflitos, aborrecidos e/ou angustiados
demais. Para os brancos, a vida era uma sofrida obrigação, e todos estavam
condenados ao trabalho e subordinados ao lucro, enquanto que, para os índios,
"a vida era uma tranquila função de existência, num mundo dadivoso e numa
sociedade solidária".
Outras instituições que tiveram grande
influência na gestação étnica do Brasil foram as donatarias e as reduções, onde
os índios viviam submetidos às ordens dos missionários. No ponto de vista de
Darcy o Brasil tem sido, ao longo dos séculos, um terrível moinho de gastar
gentes. O fato é que se gastaram milhões de índios, milhões de africanos e
milhões de europeus. Comenta:
“Foi
desindianizando o índio, desafricanizando o negro, deseuropeizando o europeu e
fundindo suas heranças culturais que nos fizemos. Somos, em consequência, um
povo síntese, mestiço na carne e na alma, orgulhoso de si mesmo, porque entre
nós a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Um povo sem peias que nos atenham
a qualquer servidão, desafiado a florescer, finalmente, como uma civilização
nova, autônoma e melhor”. (1995, p.13)
Nossa matriz negra foi responsável por
remarcar a amálgama racial e cultural brasileira com suas cores mais fortes.
Diz Darcy Ribeiro:
Nossa
matriz africana é a mais abrasileirada delas. Já na primeira geração, o negro,
nascido aqui, é um brasileiro. O era antes mesmo do brasileiro existir,
reconhecido e assumido como tal. O era, porque só aqui ele saberia viver,
falando como sua língua do amo. Língua que não só difundiu e fixou nas áreas
onde mais se concentrou, mas amoldou, fazendo do idioma do Brasil um português
falado por bocas negras, o que se constata ouvindo o sotaque de Lisboa e o de
Luanda”. (1995, p. 14)
Darcy assinala com grande lamento que
"nossos patrícios negros" sofreram e ainda sofrem o drama de sua
penosa ascensão de escravo a assalariado e a cidadão, sobre a dureza do
preconceito racial.
O
processo de formação do povo brasileiro foi caracterizado constantemente por
situações de conflitos. Darcy Ribeiro Caracteriza o entendido entrechoque dos
contingentes índios, negros e brancos dentro do quadro de conflitos não puros,
pois, segundo ele, sempre ocorreu uma combinação entre uns e outros. Para Darcy
uma nova situação se impôs com a chegada do dominador europeu, tendo em vista
que este queria buscar de todas as formas impor sua hegemonia nessas terras. Os
conflitos interétnicos que aqui existiam, sem maiores consequências, agora de
maneira mais ampla, foram surpreendidos por uma nova situação de guerra
irremediável.
Nesse confronto, as forças que se chocam
são muito desiguais:
“De
um lado, sociedades tribais, estruturadas com base no parentesco e outras
formas de sociabilidade, armadas de uma profunda identificação étnica,
irmanadas por um modo de vida essencialmente solidário. Do lado oposto, uma
estrutura estatal, fundada na conquista e dominação de um território, cujos
habitantes, qualquer que seja a sua origem, compõem uma sociedade articulada em
classes, vale dizer, antagonicamente opostas mas imperativamente unificadas
para o cumprimento de metas econômicas socialmente irresponsáveis. A primeira
das quais é a ocupação do território. Onde quer que um contingente etnicamente
estranho procure, dentro desse território, manter seu próprio modo tradicional
de vida, ou queira criar para si um gênero autônomo de existência, estala o
conflito cruento”. (Darcy Ribeiro, 1996, p.169)
Entre os momentos conflituosos Darcy
aponta para os conflitos entre os invasores, descrevendo que entre colonos e
jesuítas houve uma longa guerra sem quartéis, marcada por componentes
classistas, racistas e étnicos, O autor situa as motivações de colonização dos
jesuítas num plano distinto ao da colonização espanhola e portuguesa.
Outro
enfrentamento altamente conflituoso é o que se deu por consequências
predominantemente raciais, entre as três matrizes observamos um sentimento de
preconceito. Outra situação é a de caráter fundamentalmente classista, que
configura a luta entre proprietários e as massas trabalhadoras. Darcy, ao que
parece, vê essas lutas identificando-as como o recrutamento de mão-de-obra para
a produção mercantil.
No processo de formação sociocultural do
Brasil ele vê a organização do que ele chama de empresas. A empresa escravista,
ele a vê como a principal, latifundiária e monocultora que foi sempre altamente
especializada e essencialmente mercantil. Outra, já como forma alternativa de
colonização, foi a empresa jesuítica. Esta estava fundada na mão-de-obra servil
dos índios. Uma terceira, que tinha um alcance social bastante considerável,
foram as múltiplas microempresas de produção de gêneros de subsistência e de
criação de gado, baseada em diferentes formas de aliciamento de mão-de-obra.
Estas incorporam os mestiços de europeus com índios e negros dando corpo ao que
viria a ser a essência do povo brasileiro.
Darcy diz que essas empresas, cada uma
com seus fins particulares, atuaram para garantir o êxito do empreendimento
colonial português no Brasil. Uma quarta empresa foi composta pelo núcleo
portuário de banqueiros armadores e comerciantes de importação e exportação. Formavam
o componente dominante da economia colonial e o mais lucrativo dela. Ainda
sobre o processo de formação sociocultural, ele organiza uma visão de conjunto
do processo de urbanização brasileira. Segundo Darcy, o Brasil nasceu já como
uma civilização urbana, separada em conteúdos rurais e citadinos.
Ele
organizou um quadro da questão agrária brasileira, onde comenta as dimensões
espantosas dos latifúndios, a questão do monopólio da terra e a monocultura.
Relacionou o temível êxodo rural com o inchaço das cidades em consequência
causando a miséria da população urbana. Para
Darcy formou-se um modelo político-econômico que estratifica a população
brasileira.
Para Darcy formou-se um modelo
político-econômico que estratifica a população brasileira. Diz:
“A
estratificação social gerada historicamente tem também como característica a
racionalidade resultante de sua montagem como negócio que a uns privilegia e
enobrece, fazendo-os donos da vida, e aos demais subjuga e degrada, como objeto
de enriquecimento alheio. Esse caráter intencional do empreendimento faz do
Brasil, ainda hoje, menos uma sociedade do que uma feitoria, porque não
estrutura a população para o prenchimento de suas condições de sobrevivência e
de progresso, mas para enriquecer uma camada senhorial voltada para atender às
solicitações exógenas”. (1996, p. 212)
Sobretudo, a distância social entre ricos
e pobres é, para Darcy Ribeiro, uma condição muito assombrosa, somando-se a
isso a discriminação sofrida pelos negros, mulatos e índios. O problema racial
constitui-se num sério problema para o Brasil. De maneira mais seria é aquele
que pesa sobre os negros, a mais árdua foi e, ainda é, a conquista de um lugar
e de um papel de participante legítimo na sociedade nacional.
No final do século XIX, a crise de
desemprego que ocorreu na Europa trouxe para o Brasil sete milhões de
imigrantes. Eles vinham para trabalhar nas plantações de café, o principal
produto de exportação da época. Acabaram ocupando o lugar dos mestiços e
escravos libertos, como mão-de-obra assalariada. Os europeus se fixaram
principalmente em São Paulo e nas cidades do sul do país, onde revigoraram a
vida local e promoveram o primeiro surto de industrialização do país.
Ainda hoje, comenta haver a mentalidade
assimilacionista que leva os brasileiros a supor e desejar que os negros
desapareçam pelo “branqueamento” progressivo. Para Darcy a característica
distintiva do racismo brasileiro é que ele não incide sobre a origem racial das
pessoas como por exemplo no Estados unidos, mas sobre a cor de sua pele. Para
ele, a possibilidade de existência de uma democracia racial está vinculada com
a prática de uma democracia social, onde negros e brancos partilhem das mesmas
oportunidades sem qualquer forma de desigualdade, avalia o processo de
estruturação como uma configuração diferente de quantas haja, segundo ele só
explicável em termos, históricos.
O Brasil destaca-se no mundo por sua
péssima distribuição de renda. Quando o indivíduo consegue melhorar de vida, é
possível perceber que seus descendentes em uma ou duas gerações cresceram em
estatura, se refinaram, se educaram. Muitos estrangeiros que chegaram aqui no
começo do século XX encontraram condições de ascensão social mais rápida do que
muitos brasileiros gerados aqui.
Em
1850 as regras de acesso à propriedade rural mudaram, foi a primeira lei de
terras do Brasil, já excludente. A simples ocupação e cultivo já não bastavam
para garantir a posse. O registro obrigatório acabou expulsando da terra os
menos favorecidos e para onde migraram estes homens e mulheres expulsos de
terras que a muito tempo cultivavam?
O país cresceu e se desenvolveu a
partir de uma economia de base agrícola, voltada para abastecer o mercado
europeu. A maioria da população concentrava-se na zona rural. As cidade e vilas
funcionavam como entrepostos comerciais, onde o povo vivia da prestação de
serviços aos fazendeiros. Somente nas regiões mineradoras é que se implantou
uma rede urbana independente da produção agrícola.
O Brasil só se tornou uma nação de fato
com a abolição da escravatura, que concedeu aos negros, ao menos no papel, a
igualdade civil, emancipados mas sem a terra que cultivaram por quase quatro
séculos, os ex-escravos abandonaram as fazendas e logo descobriram que não
podiam ficar em nenhum lugar, as terras tinham dono. Saindo de uma fazenda
caíam em outra, de onde eram, também, expulsos. A maior parte dos escravos
concentrou-se na periferia das cidades, nos bairros africanos. Ali eles criaram
uma cultura própria, feita de retalhos do que o povo africano guardou nos
longos anos da escravidão, no caso da cidade do Rio de janeiro estabeleceram-se
nos casarões conhecidos como cortiços, de onde mais tarde foram expulsos pelo
então prefeito Pereira Passos e se direcionaram rumo aos morros onde já haviam
se estabelecido os negros baianos remanescentes da guerra de canudos, surgia a
primeira “favela” o chamado “morro da favela” pelos guerreiros de canudos que
depois veio a se chamar morro da providência.
O negro, guardou, sobretudo sua
espiritualidade, sua religiosidade, seu sentido musical. É nessas áreas que ele
dá grandes contribuições e ajuda o brasileiro a ser um povo singular. Acredito
que nada melhor para sintetizar a formação deste povo e concluir esta resenha do
que seguinte afirmação de Darcy Ribeiro:
“Composta
como uma constelação de áreas culturais, a configuração histórico-cultural
brasileira conforma uma cultura nacional com alto grau de homogeneidade. Em
cada uma delas, milhões de brasileiros, através de gerações, nascem e vivem
toda a sua vida encontrando soluções para seus problemas vitais, motivações e
explicações que se lhes afiguram como o modo natural e necessário de exprimir
sua humanidade e sua brasilidade. Constituem, essencialmente, partes integrantes
de uma sociedade maior, dentro da qual interagem como subculturas, atuando
entre si de modo diverso do que o fariam em relação a estrangeiros. Sua unidade
fundamental decorre de serem todas elas produto do mesmo processo civilizatório
que as atingiu quase ao mesmo tempo; de terem se formado pela multiplicação de
uma mesma protocélula étnica e de haverem estado sempre debaixo do domínio de
um mesmo centro reitor, o que não enseja definições étnicas conflitivas”.
(1996, p. 254)